E quando o sol se põe
E quando o sol se põe em si,
O poeta escreve ao relento
Rimas pobres em sentimento,
Ricas de si.
O poeta inicia seu rebento
Quando o verso se põe em si,
E rima, com dó, o sol em si.
Continua seu lamento
Quando escreve em seu soneto,
Que, mesmo sem vontade
Fecha seu terceto,
O poeta exprime a verdade.
Em um simples folheto,
Rima com ingenuidade.
E quando o poeta se põe em si,
Enxerga seu próprio argumento:
A pobre rima em si
Enriquece seu sustento.
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Último segundo
No momento de sua
morte, Jair pode escolher qual o segundo, durante todos os segundos, que
gostaria de terminar a sua vida. Para escolher o momento exato em que gostaria
de viver novamente seu último segundo, ele viajou em sua memória lembrando de
todos os segundos de sua vida. Jair lembrou de momentos aleatórios, sem uma
sequência de tempo. Sua memória passava mais rápida por momentos em que ele não
gostava e mais lenta, em momentos felizes. Uma carteira caindo no chão,
pássaros voando ao céu azul, o mar revolto batendo nas pedras, pessoas
caminhando em um grande centro, “aos cem anos e só escreveu um livro” -
escutou, um choro e um sorriso de bebê. Jair lembrou do primeiro sorriso de seu
filho, a princípio lhe pareceu a cena mais importante de sua vida, mas logo sua
memória continuou a jornada sem que ele mesmo percebesse. Folhas caindo ao
outono, a pele branca de uma mulher caminhando na praia, tomate, um quadro de
Van Gogh, um quadro de Picasso, um quadro de sua mulher. Sua memória caminhou
lentamente. Jair lembrou o momento exato em que se apaixonou por Sílvia, sua
mulher. Ele não a conhecia, mas estava em frente a um quadro pintado por ela. A
obra mostrava uma bela paisagem impressionista, que Jair havia sonhado há
alguns anos antes de vê-la. Era o seu sonho transformado em realidade.
Novamente, Jair pensou que era o momento de sua vida, mas sua memória
trabalhava tão rápido quanto sua percepção. Pato, chocolate, nuvens, “bom dia”
- dizia um carteiro, seu cachorro pedindo a bolinha, uma caneta arranhando o
papel, o sorriso de seu avô, o carinho de sua avó, um beijo de seu neto, seu
carro novo, sua formatura, o enterro de seus avós, o enterro de seus pais, a
lágrima de sua mulher, o primeiro choro de seu filho. De tantos choros que a
vida lhe deu, este foi um dos que mais lhe rendeu alegria. A chuva caindo, uma
cachoeira, um rio, um livro aberto, uma poesia de Neruda, uma música de Piaf, o
primeiro olhar de sua mulher. Era uma noite clara, com a lua cheia, Jair andava
com amigos pela noite, quando deparou-se com o quadro de Sílvia. Ele ficou
paralisado, assustado e encantado com o que estava a sua frente. Jair não
acreditava que seu sonho virara realidade. A paisagem era exatamente como em
seus sonhos, a ponte, o pássaro, as cores, ele conseguia lembrar até o cheiro
de seu sonho. Quando Jair pensou em olhar a assinatura do quadro, uma voz leve
e suave adentra em seus ouvidos: “De onde não te conheço”. Jair leva um susto
ainda maior, pois parecia reconhecer aquela voz de algum lugar ainda mais fundo
que seus sonhos. Sua reação foi apenas falar “Como?” ao mesmo tempo em que
virava a cabeça. Quando virou completamente, Sílvia sorria. Jair continuou a
falar: “De onde te conheço?”. “Não” - disse Sílvia, que continuou: “De onde não
te conheço. É o nome do quadro. Acho bonito pintar alguns lugares que não
conheço”. Jair não reconheceu apenas o quadro, mas também o olhar de Sílvia.
Este segundo, dentro do olhar de Sílvia, é o que Jair queria levar consigo em
seu último segundo, mas as suas lembranças andavam a passos largos. Seus amigos reunidos, uma xícara de café
preto, seu cachorro correndo, uma caipirinha, ônibus lotado, um mergulho no
mar, um sapato perdido, um carro batido, um abacateiro, a campainha tocando,
seu filho saindo de casa, a enfermeira lhe dando remédio, um abraço de sua nora,
Paris, um beijo de sua mulher, uma borboleta, arroz e feijão, uma bola
quebrando a vidraça, um aperto de mão, o sorriso de sua mãe. Jair lembrou do
primeiro sorriso que viu de sua mãe, ao nascer. Jair jamais pensou que
conseguiria lembrar do momento de seu nascimento. Ali estava, perdido entre
tantas memórias, o sorriso mais confortante e bonito que havia visto em toda a
sua vida. Um sorriso acompanhado de lágrimas de felicidade. O segundo mais
esperado por sua mãe, talvez seja o seu último segundo. Ele estava convicto de
que aquele era seu último segundo. Contudo, no segundo anterior ao seu último
segundo, Jair pensou que todos esses segundos não foram planejados por ele.
Então, em seu último segundo de lembrança e respiro, apenas sussurrou:
“Obrigado”.
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“A velha morreu
sozinha.”
Seus olhos sorriam
com um deboche de quem tem alguma coisa que os outros não têm. Como quem
descobriu algo e não pode falar. Cada curva em sua pele salientava uma verdade
vivida. A vida fez com que ela enterrasse cada um de seus amigos e familiares.
Aos noventa e nove anos, Elise sempre se perguntou porquê a maioria de seus
amigos morriam com um leve sorriso e um ar de pureza e leveza em suas feições.
Sua resposta demorou a chegar, mas quando veio, foi como um alívio interno de
uma criança que, pela primeira vez, deita ao colo da mãe. Deitada ao lado esquerdo de sua cama, Elise
lembrou, em tom harmônico, a voz de seu amado. Sua mão esquerda repousava aonde
costumava ropousar a mão direita de seu marido, Beto. Sua lembrança foi tão
forte que Elise pensou escutar um sussurro de seu companheiro. “Beto, é você,
meu amor?”, a resposta veio como um sussurro ao pé do ouvido. Elise ouviu
claramente as palavras “Sou eu!”. Ela não quis acreditar no que ouvia, sua
pele, enrugada, estava arrepiada em todo o corpo. Elise, então, continuou a
perguntar: “Você veio me buscar, meu amor?”. Após dois longos segundos, “Sim, meu…”.
Elise não conseguia se concentrar no que estava acontecendo. Jamais havia
ouvido vozes e conversado com alguém que não estava ali. “Acredite! Estou aqui,
Elise. Afinal, os sonhos também fazem parte da realidade”. Elise escutou em
claro e bom tom a voz de Beto. Uma lágrima correu entre os caminhos marcados de
sua pele. Elise sorria com toda a felicidade de quem não o escutava há mais de
20 anos. Um piano começou a tocar. Lembrou das músicas que seu pai tocava em
sua infância. Foi então que viu uma mão estendida a sua frente e o sorriso e a
voz emocionada de sua mãe. “Pode vir, querida, estávamos com saudade”. Elise
estendeu a mão e, sozinha em sua cama, deu seu último sorriso em lágrimas.
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O lago distante
Severina caminha lentamente em meio
ao escaldante sertão. Carrega consigo um jarro de barro na cabeça. Três
crianças a acompanham: Marta, de nove anos; João, de oito anos e Tião, com seis
anos. As crianças alternam em cima de um lindo cavalo cinza para não cansarem
muito. O destino de Severina é o mesmo todo santo dia, um poço artesanal que
fica a duas horas de casa, enquanto as crianças embarcam todos os dias rumo ao
magnífico lago distante. Tião e seus irmãos precisam buscar o líquido precioso
e dar aos seus outros dois irmãos que esperam em casa. O pote sagrado, que
contém o líquido precioso, é carregado pela rainha mãe e pelo enorme cavalo
cinza de orelhas longas até chegar ao príncipe Clemente e sua irmã Maria. Todos
os dias os Tião, João e Marta salvam a vida de seus irmãos, enquanto Severina
caminha lentamente em meio ao escaldante sertão.
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