Escritor Leonardo


E quando o sol se põe


E quando o sol se põe em si,
O poeta escreve ao relento
Rimas pobres em sentimento,
Ricas de si.

O poeta inicia seu rebento
Quando o verso se põe em si,
E rima, com dó, o sol em si.
Continua seu lamento

Quando escreve em seu soneto,
Que, mesmo sem vontade
Fecha seu terceto,

O poeta exprime a verdade.
Em um simples folheto,
Rima com ingenuidade.

E quando o poeta se põe em si,
Enxerga seu próprio argumento:
A pobre rima em si
Enriquece seu sustento.

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‘Já na estação o trem aguardava os últimos embarques. A mulher confusa e aparentemente amedrontada’ olhava todas aquelas pessoas a embarcar. Tinha acabado de chegar na estação, não sabia qual o melhor destino a seguir. Lembrava apenas de seus últimos oitenta e quatro anos. Logo sua memória mostrou sinais de melhoras, inclusive lembranças de coisas que não aconteceram em sua vida apareciam com certa constância, o que causava ainda mais confusão em sua cabeça. A cada lembrança, mudava a estação. O trem moderno dava lugar ao velho e bom maria fumaça, as pessoas trocavam suas camisetas por ternos, gravatas e cartolas. As mulheres alongavam as suas saias. Ela chegou a pensar que estava sonhando, quão surreal era a cena que passava a sua frente. Uma senhora com a voz doce e suave sussurrava palavras de conforto ao seu ouvido, que soavam como uma verdade óbvia que nunca houvera ocorrido em seus oitenta e quatro anos de vida. A estação, agora, silenciava seus pensamentos. As pessoas que ali transitavam eram todas suas conhecidas, que a encontraram pelo menos uma vez em sua vida. A senhora sussurrou mais algumas palavras em seu ouvido, ‘estão todos ansiosos para lhe ver, quando menos esperar nos encontraremos novamente’,  deu um beijo em sua testa e embarcou no trem com destino a Verso. Um homem, com olhar tranquilo, a convidou para embarcar em um dos trens apenas com um sorriso e balançando a cabeça para dentro do vagão. Mesmo sem o reconhecer, a mulher embarcou, confiando apenas no olhar sincero e no sorriso que parecia vir da pureza da alma. Ela foi a última a embarcar e o trem seguiu rumo ao desconhecido Uno.

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Último segundo

No momento de sua morte, Jair pode escolher qual o segundo, durante todos os segundos, que gostaria de terminar a sua vida. Para escolher o momento exato em que gostaria de viver novamente seu último segundo, ele viajou em sua memória lembrando de todos os segundos de sua vida. Jair lembrou de momentos aleatórios, sem uma sequência de tempo. Sua memória passava mais rápida por momentos em que ele não gostava e mais lenta, em momentos felizes. Uma carteira caindo no chão, pássaros voando ao céu azul, o mar revolto batendo nas pedras, pessoas caminhando em um grande centro, “aos cem anos e só escreveu um livro” - escutou, um choro e um sorriso de bebê. Jair lembrou do primeiro sorriso de seu filho, a princípio lhe pareceu a cena mais importante de sua vida, mas logo sua memória continuou a jornada sem que ele mesmo percebesse. Folhas caindo ao outono, a pele branca de uma mulher caminhando na praia, tomate, um quadro de Van Gogh, um quadro de Picasso, um quadro de sua mulher. Sua memória caminhou lentamente. Jair lembrou o momento exato em que se apaixonou por Sílvia, sua mulher. Ele não a conhecia, mas estava em frente a um quadro pintado por ela. A obra mostrava uma bela paisagem impressionista, que Jair havia sonhado há alguns anos antes de vê-la. Era o seu sonho transformado em realidade. Novamente, Jair pensou que era o momento de sua vida, mas sua memória trabalhava tão rápido quanto sua percepção. Pato, chocolate, nuvens, “bom dia” - dizia um carteiro, seu cachorro pedindo a bolinha, uma caneta arranhando o papel, o sorriso de seu avô, o carinho de sua avó, um beijo de seu neto, seu carro novo, sua formatura, o enterro de seus avós, o enterro de seus pais, a lágrima de sua mulher, o primeiro choro de seu filho. De tantos choros que a vida lhe deu, este foi um dos que mais lhe rendeu alegria. A chuva caindo, uma cachoeira, um rio, um livro aberto, uma poesia de Neruda, uma música de Piaf, o primeiro olhar de sua mulher. Era uma noite clara, com a lua cheia, Jair andava com amigos pela noite, quando deparou-se com o quadro de Sílvia. Ele ficou paralisado, assustado e encantado com o que estava a sua frente. Jair não acreditava que seu sonho virara realidade. A paisagem era exatamente como em seus sonhos, a ponte, o pássaro, as cores, ele conseguia lembrar até o cheiro de seu sonho. Quando Jair pensou em olhar a assinatura do quadro, uma voz leve e suave adentra em seus ouvidos: “De onde não te conheço”. Jair leva um susto ainda maior, pois parecia reconhecer aquela voz de algum lugar ainda mais fundo que seus sonhos. Sua reação foi apenas falar “Como?” ao mesmo tempo em que virava a cabeça. Quando virou completamente, Sílvia sorria. Jair continuou a falar: “De onde te conheço?”. “Não” - disse Sílvia, que continuou: “De onde não te conheço. É o nome do quadro. Acho bonito pintar alguns lugares que não conheço”. Jair não reconheceu apenas o quadro, mas também o olhar de Sílvia. Este segundo, dentro do olhar de Sílvia, é o que Jair queria levar consigo em seu último segundo, mas as suas lembranças andavam a passos largos.  Seus amigos reunidos, uma xícara de café preto, seu cachorro correndo, uma caipirinha, ônibus lotado, um mergulho no mar, um sapato perdido, um carro batido, um abacateiro, a campainha tocando, seu filho saindo de casa, a enfermeira lhe dando remédio, um abraço de sua nora, Paris, um beijo de sua mulher, uma borboleta, arroz e feijão, uma bola quebrando a vidraça, um aperto de mão, o sorriso de sua mãe. Jair lembrou do primeiro sorriso que viu de sua mãe, ao nascer. Jair jamais pensou que conseguiria lembrar do momento de seu nascimento. Ali estava, perdido entre tantas memórias, o sorriso mais confortante e bonito que havia visto em toda a sua vida. Um sorriso acompanhado de lágrimas de felicidade. O segundo mais esperado por sua mãe, talvez seja o seu último segundo. Ele estava convicto de que aquele era seu último segundo. Contudo, no segundo anterior ao seu último segundo, Jair pensou que todos esses segundos não foram planejados por ele. Então, em seu último segundo de lembrança e respiro, apenas sussurrou: “Obrigado”.

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“A velha morreu sozinha.”

Seus olhos sorriam com um deboche de quem tem alguma coisa que os outros não têm. Como quem descobriu algo e não pode falar. Cada curva em sua pele salientava uma verdade vivida. A vida fez com que ela enterrasse cada um de seus amigos e familiares. Aos noventa e nove anos, Elise sempre se perguntou porquê a maioria de seus amigos morriam com um leve sorriso e um ar de pureza e leveza em suas feições. Sua resposta demorou a chegar, mas quando veio, foi como um alívio interno de uma criança que, pela primeira vez, deita ao colo da mãe.  Deitada ao lado esquerdo de sua cama, Elise lembrou, em tom harmônico, a voz de seu amado. Sua mão esquerda repousava aonde costumava ropousar a mão direita de seu marido, Beto. Sua lembrança foi tão forte que Elise pensou escutar um sussurro de seu companheiro. “Beto, é você, meu amor?”, a resposta veio como um sussurro ao pé do ouvido. Elise ouviu claramente as palavras “Sou eu!”. Ela não quis acreditar no que ouvia, sua pele, enrugada, estava arrepiada em todo o corpo. Elise, então, continuou a perguntar: “Você veio me buscar, meu amor?”. Após dois longos segundos, “Sim, meu…”. Elise não conseguia se concentrar no que estava acontecendo. Jamais havia ouvido vozes e conversado com alguém que não estava ali. “Acredite! Estou aqui, Elise. Afinal, os sonhos também fazem parte da realidade”. Elise escutou em claro e bom tom a voz de Beto. Uma lágrima correu entre os caminhos marcados de sua pele. Elise sorria com toda a felicidade de quem não o escutava há mais de 20 anos. Um piano começou a tocar. Lembrou das músicas que seu pai tocava em sua infância. Foi então que viu uma mão estendida a sua frente e o sorriso e a voz emocionada de sua mãe. “Pode vir, querida, estávamos com saudade”. Elise estendeu a mão e, sozinha em sua cama, deu seu último sorriso em lágrimas.

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O lago distante


            Severina caminha lentamente em meio ao escaldante sertão. Carrega consigo um jarro de barro na cabeça. Três crianças a acompanham: Marta, de nove anos; João, de oito anos e Tião, com seis anos. As crianças alternam em cima de um lindo cavalo cinza para não cansarem muito. O destino de Severina é o mesmo todo santo dia, um poço artesanal que fica a duas horas de casa, enquanto as crianças embarcam todos os dias rumo ao magnífico lago distante. Tião e seus irmãos precisam buscar o líquido precioso e dar aos seus outros dois irmãos que esperam em casa. O pote sagrado, que contém o líquido precioso, é carregado pela rainha mãe e pelo enorme cavalo cinza de orelhas longas até chegar ao príncipe Clemente e sua irmã Maria. Todos os dias os Tião, João e Marta salvam a vida de seus irmãos, enquanto Severina caminha lentamente em meio ao escaldante sertão.

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